A antropologia angolana, do período pós-independência, foi tendo um certo alento, sobretudo na etapa que se seguiu à extinção do partido único onde se dava, pelo menos ao nível das instituições académicas, como a universidade, um carácter determinista ao materialismo dialéctico e ao Marxismo-Leninismo, na concepção de que estas ciências mais gerais da natureza, da sociedade e do pensamento humano, bastavam para explicar a complexidade social e cultural da sociedade angolana. Se a questão se punha assim a nível das ciências sociais, como a Sociologia e a Filosofia, pior ainda em disciplinas como a Antropologia onde os hábitos, usos e costumes da Angola rural, eram vistos com suspeição, e como um perigo à unidade nacional, por se apresentarem como factores estruturantes do regionalismo, tribalismo, racismo e outros que eram, por isso, considerados contrários à ideologia reinante no momento.
Logo após as primeiras eleições, verificou-se o aparecimento de algum pensar antropológico, “genuinamente “ angolano, vindo, sobretudo de intelectuais e em trabalhos de doutoramento. Os trabalhos em questão são válidos sob o ponto de vista científico uma vez que, como se sabe, a ciência é irmã gémea da insuficiência, pois, parafraseando Lakatos, o conhecimento científico é, para além de refutável, e não-dogmático, sempre relativo. Daí que o mesmo se autoquestione constantemente, sendo esta a sua própria vitalidade para lances mais audaciosos e auspiciosos para se aproximar, mais e mais, à realidade, na maior parte dos casos intangível.
A ausência em Angola de um ambiente académico fértil, ligado a correntes do pensamento antropológico, sustentado por revistas científicas especializadas, debates e seminários acalorados, tem levado a que os nossos antropólogos sejam mais aplaudidos nos palcos de fora, na maior parte desconhecedor, pelo menos em profundeza e vivência da nossa “realidade”, do que nos palcos do país. Uma das razões é também a pouca relevância, que, na terra, se dá às questões do espírito, enlouquecidos como estão os intelectuais por questões ligadas ao corpo.
Não obstante ser salutar a divulgação, no exterior, da nossa cultura, desde que não se a matize de folclore a que os poderes instituídos estão viciados, são necessárias discussões internas mais profundas para que não se caia na tentação das “verdades absolutas”, ou em afirmações categóricas baseadas, na maior parte dos casos, em generalizações fortuitas, para não dizer inventadas pelo investigador.
Daí que se notem, em certos estudos, conclusões que nem sempre derivam de uma visão de conjunto e, por vezes, a assumpção de teses que fazem transparecer que os seus autores pugnam por, deliberadamente ou não, ignorar que os grupos sociais, longe de se manterem estanques, sofrem processos de influência recíproca ao ponto de afectar, inclusivamente, os processos identitários. E, hoje, não espanta a ninguém, ver um Kimbundu, Ovimbundu ou de uma outra etnia, a identificar-se com a cultura, os valores, as atitudes e as posturas cubanas, portuguesas, brasileiras ou outras, naquilo a que se chama de aculturação.
No entanto, se isso é mais fácil quanto à identidade individual, já não o é, quando se tratam de grandes grupos, como é o caso dos grupos etnolinguísticos angolanos. Podemos, a título de exemplo, citar, sem tirar o merecido mérito, os trabalhos de Ruy Duarte de Carvalho, sobre os grupos pastoris, da província do Namibe, os Kuvale ou Mucubais.
Para Carvalho (1997:52), “a sociedade Kuvale é tipicamente segmentária, sem poder central constituído”. Carvalho também afirma que os Kuvale, como uma comunidade pastoril, vivem, na sua essência, à base do gado, sendo, as outras actividades como a agricultura – de milho ou massango nas mulolas -, a olaria e a produção do óleo de mupeke, subsidiárias. Encontramos também em Esterman (1961) os mesmos pontos de vista, embora, verdade seja dita, os trabalhos de Ruy de Carvalho sejam mais profundos no tocante ao papel que o gado desempenha na vida social, económica, religiosa e até política dos Kuvale. Contudo, deslocando-nos um pouco mais a norte de Moçâmedes, na província de Benguela (Dombe Grande) encontramos um subgrupo Kuvale, os Mudombe. Pode-se, a olho nu, verificar que, quer em termos da organização social, quer do parentesco, quer ainda a nível das actividades que realizam, as afirmações de Carvalho colidem com esta nova realidade.
Os Mucubais da região dos Dombe Grande radicaram-se ali por volta dos anos 20 e, foram, aos poucos, sofrendo uma grande influência dos Ovimbundu, que praticamente alterou toda sua organização social, embora a sua identidade étnica permaneça. Assim, embora alguns aspectos como, por exemplo, a transumância se mantenham, outros se alteraram radicalmente: os Kuvale de Dombe Grande vivem em casas de pau-a-pique, adobe e tijolo, cobertas de zinco e muitas delas de construção definitiva muito diferentes das dyiunvu (palhotas triangulares feitas de mutiatis e cobertas de capim e bosta de boi) que se vêem na província do Namibe. O parentesco também se alterou neste grupo. Assim, contrariamente ao que se verifica mais a sul, a tendência está mais voltada para a família nuclear e monogâmica e a herança é única e exclusivamente patrilinear (pai para filho); outro aspecto distinto é o facto de muitos deles se dedicarem a pesca e a sua organização social assentar no soba grande, para conjuntos de cinco povoações, que contam com outros sobas e os sekulu, conselheiros ou anciãos.
Afirmações categóricas podem ser encontradas em Melo (2007) mormente no que toca à problemática da carta étnica angolana. Na opinião desta antropóloga, a carta étnica actual foi elaborada por etnólogos e antropólogos coloniais, respondendo à ideologia do poder colonial, desligados da identidade étnica dos povos de Angola e, no ponto de vista dela, fabricando grupos inexistentes. E, como exemplo, cita os grupos Nyaneka-Nkumbi” (2007: 24-26), Lunda-Cokwe” e os “Khoi-San que, na óptica da autora, são aspectos folclóricos da “antropologia” colonial. Nesta linha de ideias, os Nyaneka, seriam, por exemplo, um grupo étnico distinto dos Nkumbi, e não uma grupo etnolinguístico único como soe conceber-se. Muito longe de querermos defender as prática coloniais, que também, diga-se em abono da verdade, e nisso estamos de acordo com Melo, responderam à ideologia do poder colonial, somos reticentes na aceitação de algumas teses desta investigadora no que diz respeito à tão propalada especificidade identitária dos Nyaneka. Logicamente que a identidade dos Nyaneka em relação aos Nkumbi, não pode ser procurada, como defende Melo, em aspectos como a socialização, o ritual de iniciação, com o seu cerimonial, o efuko, ou mesmo o parentesco, uma vez que, variando em alguns aspectos , esses ritos são os mesmos que encontramos nos Nkumbi, ou mesmo em grupos mais afastados sob o ponto de vista étnico, como os Ovimbundu, os Ambos e outros, porquanto todos são de raíz bantu. Assim, a determinação da identidade étnica de qualquer grupo assume-se como algo complexo, para além de sensível , que extravasa a antropologia, e exige a intervenção de outras disciplinas como a Linguística, a Arqueologia e a Genética. E se nos apegarmos à linguística, que, igualmente, serviu de base aos antropólogos portugueses, alguns dos quais de renome internacional, tal como Carlos Esterman, José Redinha, Mesquitela Lima, apenas para citar alguns, poderemos constatar que não se encontravam tão distantes da realidade. De acordo com Kukanda (1986) a língua do grupo Nyaneka-Humbi é única, tendo ela uma série de variantes, tais como, o mwila, o ngambo, o humbi, o handa (mupa), o handa (cipungu) o cilenge-humbi e o cilenge-muso. Se Melo se apegasse a critérios linguísticos como os traços morfo-sintácticos, as classes nominais, o critério lexical, morfológico e fonológico de língua dos Nyaneka e dos Humbi ficaria surpreendida pela similaridade linguística entre ambas. Mas, claro, seria exigir demasiado a alguém ser simultaneamente antropólogo e linguista.
Nas ciências sociais e humanas, e sobretudo em áreas como a Antropologia, já que, na sua maior parte são fruto de pesquisas qualitativas assentes em processos heurísticos derivados das informação obtidas através key informant, de pesquisas de campo, ou mesmas das narrativas vivenciais, recomenda-se toda a prudência e pouca pressa para se tirarem conclusões. Recorde-se que as “verdades absolutas” sempre foram perniciosas na história da humanidade, pois se, apossadas por poderes mal-intencionados, poderão ser nefastos para uma determinada comunidade.
E, infelizmente a África está cheia desses exemplos.
Bibliografia:
Carvalho,R.D. (1997). Aviso à navegação. Luanda. Inald
Estermann,C. (1961).Etnografia do sudoeste de Angola : grupo étnico nhaneca-humbe Lisboa. Junta de Investigações do Ultramar, 1961.
Melo, R. (2007). Homem é Homem, Mulher é Sapo. Género e Identidade entre os Handa no Sul de Angola, Lisboa: Edições colibiri.
Minader (2007). Diagnóstico rápido rural zona agro-ecológica orla
baixa costeira província de Benguela, Angola.
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