O Grau Zero na Escrita Poética de Agostinho Neto

agostinho neto

Deparei-me com  a poesia de Agostinho Neto, pela primeira vez,  por um mero acaso. Nascida em meados dos  anos 80, em Portugal, filha de pais que, fugidos da guerra em Angola, ali  haviam fixado residência, vi-me num dia desses diante de uma edição de bolso, de capa amarela, da “Sagrada Esperança”, que repousava numa modesta estante que tínhamos na sala de estar. Tratava-se de um exemplar trazido pela minha mãe, que se juntara  ao pai dois anos antes do meu nascimento.

Na minha infância, dividia o tempo com a escola e a casa onde, aos sábados, o meu pai, depois de uma semana árdua na Pedreira,  nos lia, com um laivo de saudades, prazer e orgulho,  alguns poemas de Agostinho Neto. Posteriormente, na nossa pobre casa, no Barreiro, depois de ajudar a mãe nas lides domésticas, perdia-me na poesia de Neto   sem, na maior parte dos casos,  entender, dada a minha tenra idade, muitos dos versos do poeta.  Os anos que se seguiram, do primário ao secundário, foram para mim um trampolim para o mundo e para o saber, mas também foram os que determinaram a minha vocação. Concluído o nono ano,  escolhi a área de Humanidades que me abririam as portas para a formação em Letras. Nesses anos, para além de ficar mais  e mais impressionada  pelo sacrifício, e pela forma  gratificante como os nossos pais faziam das tripas coração   para que não nos faltasse o pão  (éramos cinco irmãos) e deixássemos de prosseguir com os nossos estudos,  comecei  a entrar em contacto com outros textos e correntes literárias que,  passo a passo, foram apurando o meu gosto estético e o sentido crítico. De facto, o meu espírito, tão prenhe de curiosidade, não podia ficar  indiferente  aos poemas de Camões, Cesário  Verde, Eugénio de Andrade, Fernando Pessoa,  Ana Hatherly, E. M. de Melo e Castro  e outros  não afins à língua portuguesa como Baudelarie.  Não tardou que a minha mente se convertesse num compósito de gostos, saberes sobre  as correntes e as tendências literárias como o realismo, lirismo, modernismo, surrealismo e   a poesia experimental.

 Foi por esta altura que, influenciada pelo professor de Língua Portuguesa do Décimo Ano,  tenha começado a questionar  a literariedade (se um texto é literário ou uma aproximação grotesca a este) na poesia de Agostinho. Uma vez pus essa questão ao meu pai, ao que ele respondeu que Agostinho Neto, ombreava, como escritor, com os grandes poetas de Língua Portuguesa, tal como  Camões, e  acrescentou  que  se isso não era referido era pelo facto de Neto ter pegado em armas contra o colonialismo e ser comunista. É claro que não discuti com o meu pai, embora, pela primeira vez, me tenha dado conta de quão errado é avaliar uma produção artístico-literária através de um critério extra-literário.

Nos finais dos anos 90, um acontecimento ímpar iria, pelo menos em termos conceptuais, dar-me uma maior visão no que toca à apreciação estético-literária da poesia não só de Agostinho Neto como também dos poetas em geral. Matriculei-me nesse ano na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra onde me licenciei em Línguas Modernas cinco anos mais tarde, mesmo que hoje, graças ao programa Eramus, me encontre um tanto ou quanto distanciada da pretensão inicial (ser professora de Línguas), já que estou a fazer o mestrado em Interpretação de Conferência na Universidade de Turim, Itália.

Analisar ou valorizar criticamente uma obra,  seja de que género literário for,  a partir de critérios extra-literários é, para todos os efeitos, contraproducente, e, neste sentido, subscrevo Todorov que, ao se referir aos formalistas russos, dizia: (…) “para eles, não se pode explicar a obra a partir da biografia do escritor, nem a partir de uma análise da vida social contemporânea”; também subscrevo Barthes  que introduziu na crítica literária a noção de espessura do texto e, na base desta, o estatuto de escritor.

Não sendo necessariamente defensora de uma postulação de princípios que reduzam a minha apreciação estética  unicamente aos aspectos estruturais do texto poético, não posso deixar de reconhecer a pertinência do referido estatuto no sentido de que, segundo Barthes, existem escritores e escreventes.  O escritor seria aquele que o faz por prazer enquanto o escrevente é um homem transitivo, que escreve com uma finalidade, ou seja, para testemunhar, explicar, ensinar, onde a palavra, ou o texto poético em si, são apenas um meio com o qual se pretende alcançar um fim. A  essência da espessura do texto manifesta-se através daquilo a que Jakobson chamou de literariedade, que, por outras palavras, não é nada mais senão que o facto de se   perquirir o que faz de uma determinada obra uma obra literária. É na mesma senda que caminha Jan Mukarovsky, segundo o qual a linguagem poética é uma forma diferente de linguagem, com uma função diversa da linguagem corrente, e Aguiar e Silva, que indo um pouco mais longe, postula que a função diversa  e determinante de um texto poético é a sua função estética. Sem querer meter-me em aspectos relativos às funções semióticas do texto poético, queria apenas referir que a poesia, quer pela sua estrutura e complexidade, quer pelos níveis a que ela apela para se dotar de um maior pendor estético, é um dos mais intricados géneros literários.

Um olhar, por mais superficial que seja, para os poemas de Agostinho Neto permite, à partida, notar que este poeta, mais preocupado com a efervescência que se vivia na longa noite colonial, tenha feito tábua rasa à necessária e indissociável arquitectura do texto poético  que se consubstancia nas figuras quer de nível fonético, com a correspondente criação de efeitos estético-expressivos, quer de nível morfossintáctico, através dos recursos sintácticos morfológicos disponíveis na língua, quer ainda através de outras figuras de nível semântico. Ressalta em Agostinho Neto a urgência de transmitir, ao destinatário,  a mensagem  de revolta e apelar urgentemente pela sua consciencialização revolucionária para fazê-lo participar na causa da revolução. A  esperança de Neto assentava, necessariamente, na crença do fim do sistema colonial e  no “regresso” do homem angolano à sua terra-mãe, não como um desejo mas sim como um imperativo inadiável, tal como se pode ver neste poema “Havemos de Voltar”:

           
Às casas, às nossas lavras

às praias, aos nossos campos

havemos de voltar

 
Às nossas terras

vermelhas do café

brancas de algodão

verdes dos milheirais

havemos de voltar

 
Às nossas minas de diamantes

ouro, cobre, de petróleo

havemos de voltar

 
Aos nossos rios, nossos lagos

às montanhas, às florestas

havemos de voltar

À frescura da mulemba

às nossas tradições

aos ritmos e às fogueiras

havemos de voltar

À marimba e ao quissange

ao nosso carnaval

havemos de voltar

À bela pátria angolana

nossa terra, nossa mãe

havemos de voltar

Havemos de voltar

À Angola libertada

Angola independente

 

O facto de eu não ter vivido no  regime colonial, com as suas agruras e grilhetas, longe de me isentar do teor informacional que Agostinho Neto pontualiza nos seus poemas, me faz sentir  cúmplice e compreensivo relativamente  à mensagem de esperança e ao desejo de libertação expressos na maior parte dos textos de Agostinho Neto, sintetizados no sintagma “Sagrada Esperança”. Hábil construtor de sintagmas simples e directos, Neto elabora o texto numa linguagem harmónica cuja semântica mostra concisão, coerência e clareza. Na tessitura de seus versos, a sintaxe é suave e o texto directo. Esta característica, se bem que profícua sob o ponto de vista político e ideológico, converte, a nível artístico-literário, os poemas de Agostinho Neto num simples Kitsh ou, por outras palavras, em simples textos panfletários resultantes de  uma comunicação predominantemente informativa e apelativa e duma linguagem de cariz objectivo, factual, incidindo na actualidade em que decorria a acção, marcando os poemas por uma grande temporalidade, incompatível com uma verdadeira obra de arte. Por outras palavras, o texto poético de Agostinho Neto, salvaguardando-se as devidas excepções, não passa de um Kitsh que se assume como um verdadeiro texto panfletário.

Estamos assim perante o grau zero da escrita na poesia de Agostinho Neto, ou, conforme Barthes, o espaço nulo da escrita artística, fazendo de Neto não um escritor mas um escrevente, tal como se pode ver neste excerto de “Renúncia Impossível”:

 

Mais do que um simples suicídio

Quero que esta minha morte

seja uma verdadeira novidade histórica

um desaparecimento total

até mesmo nos cérebros

daqueles que me odeiam

até mesmo no tempo

e se processe a História

e o mundo continue

como se eu nunca tivesse existido

como se nenhuma obra tivesse produzido

como se nada tivesse influenciado na vida

se em vez de valor negativo

eu fosse zero

 

Só me resta dizer que se estivesse diante de meu pai, dir-lhe-ia que o grande mérito de Agostinho Neto não foi o de produzir poesia de qualidade, já que os seus textos não ultrapassam o nível sofrível, mas o facto de ele ter dado à sua mensagem uma estrutura poética a fim de fazer vingar o seu projecto político-ideológico, que culminou com a independência do país aos 11 de Novembro de 1975 e é nesta perspectiva que Neto terá de ser recordado, ou seja, como o Fundador da Nação Angolana, porque os seus poemas estão muito aquém do que se poderia considerar uma verdadeira obra de arte.

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Bibliografia:

AGUIAR E SILVA, V.M. (1991) Teoria da Literatura. Coimbra. Livraria Almedina.

BARTHES, Roland. Novos ensaios críticos seguidos de O grau zero da escritura. São Paulo: Cultrix, 1984.

ECO, U. (1975). Trattato di semiotica generale. Milano: Bompiani

JAKOSBON, R. (1981). Questions de poétique. Paris,Seueil.

NETO, A. (1979). Sagrada Esperança. Luanda

NETO, A.(1982).A Renúncia Impossível. Poemas inéditos. Luanda. Inald.

TODOROV,T. (1984),poétique.Paris,Seuil.

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