A saga dos Chingunji

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 Em Janeiro de 1975, em trânsito para Luena, fiquei umas horas  na cidade do Kuito. Estavam ali a minha mãe e meus dois irmãos. Eles participavam numa Conferência da Unita, que ficou célebre por ter criado a organização infantil desse partido, a Alvorada. Eu estava muito longe de imaginar que me iria cruzar com uma família muito especial; digo especial, por ela ter povoado a minha mente com sentimentos de admiração. Mas também por ela estar marcada, como se viu mais tarde, pela mais terrível saga que podia imaginar. Recordo-me de tudo tal como se fosse hoje: num dos intervalos da Conferência, a mãe, logo que deu por nós, pediu que a acompanhássemos. Furámos a multidão que, no pátio, conversava sobre a impressão que o Líder do partido lhes causara. Detemo-nos diante de uma senhora que, segundo a mãe, fora sua colega na Escola Means do Dôndi. Ela respondia pelo nome de Violeta Jamba. Era uma mulher possuidora de uma forte personalidade e de um aprumo próprio de uma rainha.

Pelo tempo, já não disponho dos pormenores da conversa que se seguiu entre elas. Mas não me esqueci  de a “tia” Violeta ter-nos olhado com respeito, ternura e admiração  e ter dito à minha mãe:”cuide-os bem e faça tudo para que eles saibam tomar conta deles próprios”. Mentiria se dissesse que essas palavras não me haviam impressionado. Tinha dezasseis anos, mas isso não evitou que pensasse em algo que comentei depois com os meus entes queridos: embora indirectamente, aquela senhora estava a fazer uma apologia à vida. E, não foi por acaso que a minha mãe, retorquiu:” só reconhece o valor de um objecto ou de uma pessoa, aquele que o perdeu”. Dito por outras palavras, a tia Violeta já  estava a viver  os efeitos de uma saga que os iria envolver tal  qual os tentáculos de um polvo gigante.

            Uma saga é definida em qualquer dicionário em várias acepções: para os escandinavos, as sagas são lendas redigidas na Islândia do século XII ao século XIV. Para os romanos, a saga era encarada como bruxa ou feitiçaria. Actualmente, há quem defina a saga como a história, pejada de dramas, de determinadas pessoas ou mesmo como uma maldição. Esta acepção pode ser encontrada nos livros “A saga dos Kennedy”  ou  “ A maldição dos Kennedy”  de Rose Fitzgerald  Kennedy e Edward Klein, respectivamente.

Na verdade, é possível estabelecer um paralelo entre os Kennedy e os Chingunji. Isso poderia ser útil para se encontrar alguns pontos em comum sobre as fontes de uma saga.

As sagas acontecem, por norma, em famílias numerosas, inteligentes, dinâmicas, empreendedoras, com um grande protagonismo social e político, que agem em função do projecto familiar de um patriarca. Diz-nos Klein que, para o caso dos Kennedy, a saga abateu-se sobre esta família pelo facto de Patrick Kennedy, um irlandês, que emigrou para os Estados Unidos da América, em 1858, ter deixado um legado de humilhação que estimulou a “imprudência e o comportamento arriscado dos seus descendentes”.

Patrick Kennedy morreu aos 35 anos de tuberculose.

Talvez não seja o caso do patriarca dos Chingunji, Eduardo Jonatão Chingunji. No entanto,  não resta dúvida alguma de que o legado por ele deixado  – meter-se na vida política – tenha, sob o efeito de bola de neve, levado toda os seus descendentes para o caminho dramático que se conhece.

 Eduardo Jonatão Chingunji foi um professor de prestígio e Director das escolas da Missão da Chissamba. Em 1975, depois da expulsão do Mpla do Centro de Angola, foi nomeado pela Unita, como governador da província do Bié. Militante pioneiro e activo da Unita desde o tempo colonial, sofrera o desterro  nas prisões do Tarrafal de onde viria a sair em 1975.  O lado mais aberrante do seu contencioso com as autoridades coloniais foi o facto destes o terem separado da sua esposa, Violeta Jamba, que fora enviada para S. Nicolau.

Eduardo Jonatão Chingunji, tal como o patriarca dos  Kennedy, teve várias filhos. Destes, David Jonatão Chingunji (Samuimbila), tal como o seu irmão Samuel Piedoso Chingunji (Kafundanga) não chegaram a ver a independência do país. Logo após o 25 de Abril, com a entrada da Unita nas cidades, falava-se, de viva voz, desses dois irmãos, elevados à categoria de heróis míticos pela Unita: Samuel Piedoso Chingunji (Kafundanga) foi o primeiro chefe de Estado - Maior da Unita e viria a falecer, em 1973, de malária. David Jonantão Chingunji (Samuimbila) perdera a vida três anos atrás num ataque a um ATM do exército colonial. Mas também já se falava de uma possível participação de Jonas Savimbi na morte dos dois por rivalidades. Mas, como em todas as sagas, o mistério prevalece até hoje (recordemo-nos do mistério que envolveu a morte do presidente Kennedy).

A independência do país chegou com os Chinjunji praticamente completos, à excepção dois irmãos.

Paulo Chingunji
Paulo Chingunji

Conheci Eduardo Jonatão Chingunji no Bié, em finais de 1975, durante um culto numa das igrejas evangélicas do Kuito. Um homem calmo, que inspirava respeito e admiração, pareceu-me, no entanto, demasiado conservador. Lembro-me de, nesse culto, ter-se voltado contra nós, as mulheres, que usávamos saias e calças, defendendo, com ardor e paixão, a moda africana, de as mulheres usarem panos. Atreveu-se, inclusivamente, a dizer que iria meter a polícia nas ruas, a fim de punir, com prisão, as jovens e as mulheres que se atravessem a trajar de calças e de saias. Óbvio que isso tenha caído mal a Jonas Savimbi. Este, sempre de olhos posto aos movimentos dos Chingunji, aproveitou este deslize para o atacar pública e veementemente num comício. Tratava-se da gota de água que fizera transbordar o copo. Já se sabia, na altura, que as ideias de Eduardo Jonatão Chingunji  colidiam com as  do Líder da Unita. Para um religioso, nacionalista lúcido, embora conservador, como Eduardo Jonatão Chingunji era difícil aceitar algumas posturas, escolhas, posições e comportamentos promíscuos de Jonas Savimbi. Isso para não falar da amálgama de ideologias e posições contraditórias do mesmo (maoísmo, alianças com o apartheid e Americanos, Negritude, etc.). Eduardo Jonatão Chingunji era um visionário nacionalista e Jonas Savimbi um estratega que agia em função dos preceitos maoístas “não importa a cor do gato, o que importa é que cace ratos”.

 Em 1976, ainda na ressaca da fuga das cidades, e no meio da “Longa Marcha”, chegava a notícia da morte de Estevão Chingunji. Fora a única vítima de um ataque perpetrado pelas forças do Mpla. No entanto, e para não variar, também se ouviu dizer que a bala o havia atingido pelas costas, o que levava a crer que fora morto por um dos seus companheiros. Ou seja, por ordens de Jonas Savimbi.

 Cruzei-me com Estevão Chingunji na cidade do Luena, em meados de 1975, muito antes de ser nomeado governador da província de Benguela e de se ter casado com Anita Chimbili. Era um homem de carácter afável, elegante. Nunca me esqueci do orgulho com que ostentava o seu certificado, postado na parede, que atestava a sua participação num concurso de piano em Nova York onde vivia e  saíra vencedor. No entanto, isso era apenas o prelúdio. O pior ainda estava para chegar.

Em 1978, numa das minhas viagens à cidade do Lubango, uma colega, no tempo colonial, de Paulo Chingunji - outro filho do patriarca - do curso de História, na Faculdade de Letras, da Universidade de Angola, falava da sua morte num acidente de viação que ocorreu algures na província da Huíla.

Em 1979, foi assassinado o patriarca dos Chingunji, Estevão Jonatão Chingunji, sua esposa Violeta Jamba, e seus dois filhos Dino Chingunji (também foi morta Aida Henda- sua esposa, a irmã desta, Vande, e o seu filho mais novo Eduardinho)  e  Alice Chingunji (Lulu). Esta teve, por sorte, da relação com Isaías Chitombi, uma filha. Uma das poucas sobreviventes.

Alice Chingunji
Alice Chungunji

Um dos traços característicos das sagas é o facto de não afectarem apenas as famílias implicadas, mas também as pessoas que se envolvem com elas. Basta, para isso, recordarmo-nos de Carolyn Bassette Kennedy e Lauren Bessette, mulher e cunhada de John F. Kennedy Jr. (filho do ex-presidente Kennedy), respectivamente. Estas pereceram juntamente com John, em 1996, num acidente de aviação.

            Realizou-se, em 1975, na Chissamba um casamento muito falado onde estive presente. O mesmo ficou famoso por duas razões: primeiro, pelos cônjuges, pois tratava-se do enlace matrimonial de Wilson Santos  com Helena Jamba Chingunji dos Santos (irmã gémea de Tito Chinguji); segundo, por ter sido  realizado conforme os ditames da cultura Ovimbundu. Era algo impensável para cristãos devotos e assimilados à cultura ocidental. A maldição viria, no entanto, a manifestar-se nesta família quinze anos mais tarde. Em 1991, o mundo ficou boquiaberto quando soube da boca de Nzau Puna e Tony da Costa Fernandes,  o inimaginável: Haviam sido mortos Tito Chinghnji, sua esposa Raquel (Romy) e os três filhos, dois dos quais eram gémeos. A par disso, Wilson Santos, Helena Chingunji e os seus filhos (Koly, Rady e Paizinho) tiveram a mesma sorte.

 

Tito Chingunji
Tito Chingunji

A morte dos gémeos de Tito,  mostrava a intenção deliberada do mandante em limpar da face da terra a família Chingunji. Tito era um homem culto, poliglota, bem-parecido que, em 1975, era visto, na qualidade de guarda-costas, sempre ao lado de Jonas Savimbi. Diplomata hábil, passou por Londres e, mais tarde, por Washington, como representante da Unita. Tito viria a sucumbir depois de ter vivido como um animal num zoo, na Jamba, acusado de ter tido um affair com Ana Savimbi (antiga namorada), e de ter sido acusado de liderar uma intentona contra Jonas Savimbi. O que se passou efectivamente foi que os americanos olhavam para ele como a melhor alternativa para a Unita. No fundo, Tito apercebera-se da influência que ganhara a nível dos americanos e consciencializara-se de que havia incidente de mais na sua família. Pelo que se sabe, procurou fugir da base onde se encontrava, tendo sido apanhado mais tarde e assassinado às catanadas. Irrelevante que é saber quem perpetrou o assassinato, não é difícil excluir a ideia de que o mandante tenha sido Jonas Malheiro Savimbi e os executores Miguel Nzau Puna, General Epalanga e o temível e terrível sobrinho de Jonas Savimbi, Kami.

Não existem sagas sem sobreviventes. Este é o caso de Eduardo Jonatão Chingunji (Dinho) filho de Samuel Chingunji (Kafundanga). Sobreviveu por estar no exterior, a estudar, e juntar-se a um grupo de intelectuais dissidentes da Unita (Jorge Chicoty, Sousa Jamba, Dias Kanombo, Lindo Kanjunju e Yamba Yamba), que cedo se distanciaram da liderança de Jonas Savimbi. Foi ministro do Turismo e, na véspera das últimas eleições, bateu com a porta.

Fica apenas por responder a questão se uma saga é ou não uma maldição sobrenatural. É claro que a racionalidade não nos permite chegar a tanto. Resta-nos apenas dizer que existem condutas propiciadoras, na geração descendente, de comportamentos de risco (poder, ambição, promiscuidade, etc.) que devem ser acautelados na medida do possível. Talvez seja uma ideia a reter pelos poucos descendentes dos Chingunji.

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