Angolagate: Uma Nódoa Vergonhosa na História mais Recente de Angola

Viktor Bout

O caso angolagate, assim como outros inúmeros casos sobre Angola que se vão ouvindo, por aqui e por ali, sobretudo nos meios de comunicação social estrangeiros ou denunciados por ONG britânicas e americanas, nunca me interessou. Nunca me despertou qualquer interesse ou emoção devido ao facto de, desde o princípio, o ter considerado como normal no caos político e social que se seguiu ao day after   das tão malfadadas eleições de 1992, que descambaram para guerra tão bem conhecida por nós.  De facto, cenário diferente não se podia esperar; de um lado estava a Unita que, por mais paradoxal que seja, recorreu a elementos afectos à potência contra a qual lutara desde a independência, a União Soviética. É a lógica do fim que justifica os meios. Do outro lado, estava o MPLA que agiu do mesmo modo. É que, tendo em consideração os acordos de Bicesse, as duas forças políticas estavam proibidas de adquirir armas por vias legais e, por isso,  surgiram, no cenário político-militar angolano, personagens sem escrúpulos que apenas nos fazem pensar na personalidade dos nossos políticos, pois,  como se tem dito, “diz-me com quem andas e dir-te-ei quem és”.

UmPierre Falconea dessas personagens, para o caso da Unita, foi Viktor Bout, de nome verdadeiro Vadim Markovich Aminov, considerado o maior traficante de armas do mundo. Ex-agente do KGB e ex-militar da Força Área com formação superior em Línguas no Instituto Militar de Línguas Estrangeiras de Moscou, Bout veio a revelar-se como um exímio negociante de armas que alimentaram e sustentaram vários conflitos a nível do globo: na Serra Leoa, no Congo Democrático, na Colômbia (com as FARC), na Libéria (Charles Tylor), no Ruanda (apoiando os radicais hutus na aquisição de catanas e armas). Consta igualmente no seu portfólio contactos com a Al Qaeda e os Talibãs, obtendo, em troca, diamantes, transportados nos seus aviões, Antonov,  e somas avultadas de dinheiro obtidas através da venda de drogas.

Viktor Bout, cruzou-se com a Unita através de Bóris Mundombe e Marcelo Dachala "Carriça", elementos chave da rede da venda de diamantes e da compra de combustíveis e  armas para a Unita. O Mpla, sentindo-se apertado contra a parede, não demorou a reagir, ciente de que “ gato escaldado até de água fria tem medo” e apertou as mãos de dois traficantes, igualmente célebres, Pierre Falcone e Arcadis Gaydamak.

Pierre Falcone, nascido na Argélia na década dos anos 50, destacou-se, sobretudo nos anos 90 como negociante e consultor na área do Petróleo. De entre os vários bens que possui temos a destacar a sociedade Sofremi afecta, em tempos, ao Ministério do Interior Francês, os lobbys a nível do petróleo e um luxuoso rancho no Arizona, Scottsdale, onde George Bush, nos tempos de governador do Texas,  passava alguns bons momentos, isso para não falar duma sociedade, em Paris, dedicada a compra e venda de armas, a Brenco.

Falcone, ao contrário de Bout, não esteve sozinho nesta empreitada. Uniu-se a Arcadi Aleksandrovich  Gaydamak, Judeu de origem russa com outras nacionalidades como a israelita, para além da russa e, para não variar, a angolana, que também Falcone possui. Foi com essas personagens que o MPLA, na pessoa de José Eduardo dos Santos, estabeleceu o projecto para a aquisição de armamento e, assim fazer frente à Unita. O esquema era muito simples: as empresas dos dois forneciam o equipamento militar, recebendo, logo de imediato, um valor inicial. Depositavam esse dinheiro e encomendavam as armas. A outra parte era garantida em petróleo, que depois de obtido nos bancos franceses, era desembolsado em Paris para cobrir o resto dos custos e honorários.

Até aqui tudo bem e os angolanos mais atentos iam acompanhando esse processo, considerando como uma opção certa do governo angolano a fim de fazer frente a uma guerra que devastava o país. Daí que eu, e acredito que a maioria dos angolanos também, não mostrei qualquer interesse no assunto, pois o essencial era que a guerra terminasse, que vencesse o melhor, já que a paz era tão difícil de obter como ver num quarto escuro como o breu.

Contudo, desenvolvimentos subsequentes, como o julgamento de Pierre Facone e Arcadis Gaydamak, em Paris, acusados de comércio ilegal de armas, fraude fiscal, tráfico de influência e abuso de confiança, prenderam a minha atenção, numa fase em que a guerra terminara e  Viktor Bout, já se encontrava, desde  Março de 2008, atrás das grades. Só que para Falcone e Gaydamak, muita água ainda haveria por passar debaixo da ponte.

As informações que nos vai chegando do julgamento que ainda decorre em Paris, para além de nos abrirem a boca de espanto, mostram quão baixo desceram os políticos angolanos não tanto para a defesa da pátria quanto para a satisfação dos seus interesses pessoais e alguns mesmo mesquinhos.

Se não vejamos:

1.A atribuição à Pierre Falcone da nacionalidade angolana e, em consequência disso, a sua nomeação para o cargo de ministro conselheiro junto da embaixada de Angola, na UNESCO, obviamente para lhe dar a impunidade diplomática de que precisava, foi a pior das afrontas, algumas vez feitas, à personalidade dos angolanos, em particular e, dos africanos, em geral. Note-se que a UNESCO é um organismo das Nações Unidas que vela pela educação, ciência e cultura, centrando-se em aspectos como a promoção da paz, segurança,  do intercâmbio internacional através da ciência e cultura com vista à defesa da justiça, direitos humanos e as liberdades fundamentais, neste caso dos angolanos. Nomear Pierre Falcone, para um desses lugares é o mesmo que cuspir na cara dos angolanos e, sobretudo, na sua cultura secular, sedimentada, desde os tempos idos, pela Rainha Jinga, Ekuikui II, Mandume, só

para citar alguns;

2. A recepção de luvas avultadas por parte de José Leitão e José Eduardo dos Santos. Este, conforme as audiências no julgamento sobre o Angolagate que decorre em Paris, terá recebido cerca de 140 milhões de dólares, que teriam parado para contas em nome de uma das filhas e de uma sociedade do Panamá ainda em sigilo;

3. Prendas diversas oferecidas por Falcone (o que é uma aberração, sabendo-se que se trata de dinheiro angolano) ao presidente Eduardo dos Santos e a outros angolanos a si próximos, para despesas em hotéis, alugueres de iates e outros aspectos ligados à vida promíscua dos dirigentes angolanos implicados neste processo.

4. Salários de milhões de dólares, pagos, conforme as palavras do próprio Falcone, “com dinheiro angolano”, com um acréscimo de 750 mil euros de luvas, para “ a compra do silêncio”, à Madame Isabelle Delubac, secretária de confiança de Pierre Falcone, numa fase em que em Angola, tanto nas cidades como no meio rural, o povo vivia na mais aterradora miséria.

5. Lenocínio praticado a cerca de 50 jovens angolanas, muitas das quais hoje, depois de usadas e abusada, se encontram nas ruas da amargura, comendo o pão que o diabo amassou. Despendeu-se, para elas, cerca de 500.000 euros (700.000 usd). Prestavam serviços, em Paris, a todos os intervenientes nesta trama, tal como “servir café e chá”, acompanhar angolanos e franceses a assistir a partidas de ténis do torneio de Roland Garros e outros serviços que não revelamos aqui por a moral não nos permitir. Chegou-se ao ponto de se alugar, para elas e os acompanhantes, camarotes no Estádio de França para o Mundial de 1998 a 300 mil euros.

Perante um vergonha de tamanha dimensão, que será comentada pelos angolanos de geração em geração, entende-se por que razão Romain Victor,o procurador do Julgamento em Paris, revelou pressões da parte do governo angolano e mesmo francês para que o caso fosse arquivado e também, por mais estranho que pareça, foi esta a razão que fez com que caso angolagate me interessasse e me tocasse emocionalmente.

A despeito de tudo que se possa dizer sobre Viktor Bout, Pierre Falcone e Arcadis Gaydamak, eles são duas fArcadi Aleksandrovich Gaydamakaces de uma mesma moeda: fazem parte do crime organizado baseado no tráfico de armas e que se enriqueceram graças ao sangue dos angolanos (e não só). E sempre assim serão vistos apesar da insistência do Mpla e JES em apresentar Pierre Falcone como um herói nacional.

Conta-se que no século 18, um médico Vianés, ganhou fama por ter criado, o que se denominava na altura, por frenologia, um ramo do saber que, em vão, procurava determinar o carácter, as características da personalidade e os níveis de criminalidade de uma pessoa com o simples apalpar da cabeça e através da “leitura” das suas protuberâncias. A sua fama, ao chegar aos ouvidos do imperador, levou a que este o convidasse e lhe pedisse um exame a fim de ver como ele e os seus súbditos estavam nestes aspectos.  Franz Joseph Gall, como se chamava o dito médico, assim que ia apalpando a cabeça do soberano  e dos seus capangas mais entrava em pânico. Como iria dizer-lhes que as protuberâncias lhe diziam que estava diante dos maiores criminosos da história, e logo a eles os governantes  da Áustria?

O caso angolagate, talvez também me interesse por isso.

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