A origem dos Ovimbundu segundo a tradição oral

caniri

"As culturas equivalem-se. É na diferença e pluralidade que se encontra o sentido de humanidade"
Mindlin

Num dos artigos, relativos à história dos Ovimbundu, apresentamos três hipóteses sobre a possível origem deste grupo étnico, tendo-nos inclinado, depois de apresentarmos alguns factos, para a hipótese para nós a mais defensável segundo a qual os Ovimbundu descendem dos autores das pinturas rupestres de Caninguiri que, através de um processo de aculturação e miscigenação, foram adquirindo traços dos outros grupos bantu, chegados de paragens e latitudes longínquas.

Caninguiri: pinturas rupestres

Os mitos possuem uma importância capital, porquanto a análise das narrativas permite não só resgatar elementos susceptíveis de subsidiar a análise de factos históricos (complementando as fontes escritas), como também auxiliar na identificação de elementos culturais com vista à construção da identidade de um determinado grupo étnico.

O mito, e como muito bem o diz Chiapini (2000), pretende, na maior parte dos casos, explicar o surgimento do mundo e de alguns fenómenos da natureza, dentro de uma lógica estrutural, com um enredo, que entretém as pessoas, mas também mostra o nível de desenvolvimento do pensamento e da cultura de uma determinada comunidade. Pese embora o carácter lúdico, e mesmo de entretenimento, os mitos são relevantes na vida das comunidades. É precisamente isso que nos diz Lévi-Strauss (1967), para quem a relevância dos mitos não radica apenas no seu conteúdo mas, sobretudo, na sua estrutura, uma vez que eles contêm processos mentais universais.Autores como Campbell (1997) referem-se ao facto de ser característico dos mitos a presença de seres sobrenaturais, chamando-nos com isso a atenção ao facto de os mesmos pretenderem estabelecer uma ponte entre o mundo imaginário e a consciência racional. Torna-se, não obstante, necessário não confundir o mito e a lenda com a superstição. Os mitos e as lendas apresentam-se, geralmente, como narrativas populares de carácter oral, que se transmitem de geração em geração, cuja tónica dominante recai no sobrenatural, enquanto a superstição apresenta-se como a fragmentação de um velho mito, com a entrada de um novo elemento que é o medo ou o terror (Chiapini,1988).

O mito Ngalangi

Segundo os dados de que dispomos, a lenda sobre a origem do mundo dos Ovimbundu foi recolhida por Keiling (1934) e mais tarde retomada por Child (1964). A tradução de Luís Keiling é a seguinte:

“ Um dia um homem, a quem foi dado o nome de Féti (princípio), caiu do céu e deu-se a percorrer a terra e notou que, a par dos milhares de animais, ele era o único homem. Que aborrecimento e enfado sentir-se tão só no meio da criação! Para ver se espairecia, lembrou-se de ir ao Cunene para caçar um pouco. Pegou, pois, nas armas e foi em busca de um hipopótamo, que lhe fornecesse carne e gordura. Horas esquecidas esteve Féti à espera de uma peça de caça, quando, em vez do suspirado animal, viu a surgir das águas uma forma humana, muito semelhante a si mesmo: era a primeira mulher a quem deu o nome de Tchoya, que, derivando do verbo okuoya, quer dizer enfeite, ornato, perfeição. E tão bela, tão garrida a achou o nosso Féti que dela se enamorou e com ela fundou a primeira família que pela luz do sol foi alumiada. Passaram dias, passaram meses, e numa bela manhã foram os ecos da mata despertados pelos vagidos de um novo ser, que viera albergar a habitação do felizardo Féti. Não houve ave do céu, nem animal da floresta, que não viesse dar aos pais os parabéns por tão bom acontecimento. Encantados, impuseram os progenitores ao recém-nascido o nome de Ngalangi. Passaram tempos, e eis que em casa aparece um novo bebezinho, desta vez uma menina, a quem chamaram Viyé. Viyé, provém do verbo okuiya, que, em português, se traduz por vir. Queriam os pais significar que aquela filha havia de chamar a si as populações e ser o tronco de uma grande família. E Viyé veio a ser a mãe das raças do norte, isto é, das terras do Bié, enquanto Féti foi o pai das gentes do Sul. Assim, contam os Ngalangi e terminam por afirmar que deles descendem todos os habitantes do Bié, Huambo,Sambo, Cuíma e Caconda”.

Análise da narrativa

A presente narrativa levanta um aspecto muito importante do ser humano, ou seja, a tentativa de compreender a sua origem. Sob o ponto de vista da estrutura composicional, a narrativa obedece, como se pode ver, a uma linearidade cronológica dos factos, aparecendo, não obstante, um elemento de subversão, a solidão, de cuja resolução surgem outras situações, cujos desfechos vão levar ao nascimento de vários reinos; daí o seu carácter explicativo que remete para a crença de que a solidão, por si só, é perniciosa, pois o homem é, eminentemente, um ser social. Por outro lado, o tempo e o protagonista assumem posições um tanto ou quanto díspares. Se bem que a personagem principal esteja definida no texto (Féti), a atemporalidade é um aspecto notório o que torna a narrativa mais abrangente, englobando todos os subgrupos da etnia Ovimbundu, e não só, cujas origens se pretendem explicar. Neste sentido, a metáfora do homem que caiu do céu (Féti), responde, em pleno, à questão da vida e do nascimento da primeira forma de organização da sociedade humana no espaço territorial ocupado pelos Ovimbundu. Por outras palavras, tematizam-se aspectos de grande significado para a compreensão da origem dos mesmos através de uma linguagem simples. Do ponto de vista da estrutura arquetípica, posta de manifesto através do surgimento da fêmea (da lama), a mesma não pode dissociar-se da própria cultura Ovimbundu onde se gerou a narrativa, tomando em consideração o papel da mulher na referida comunidade. Recorde-se que o homem veio do céu.Outras análises poderiam ser feitas, nomeadamente em aspectos que se prendem com a micro-estrutura (aspectos linguísticos), pois estamos cientes de que uma análise deste tipo não deveria cingir-se apenas à estrutura geral da narrativa (enredo) e ao conteúdo temático. Lamentavelmente, uma tradução não permite irmos assim tão longe. Acresce a isso que o nosso propósito foi o de analisar a narrativa dos Ngalangi sob o ponto de vista macro-estrutural, apegando-nos mais em questões de índole histórico-cultural, que propriamente literária e linguística, o que poderá ser feito noutras ocasiões.

Implicações

A presente narrativa propõe uma visão endógena da origem dos Ovimbundu, contrária às fontes escritas onde a temática é posta nos processos migratórios (de fora para dentro). A lenda mostra que este processo se desenvolveu de dentro para fora, isto é, os Ovimbundu tiveram a sua origem precisamente nas proximidades do rio Cunene e daí foram-se expandido para outras áreas e regiões. Apesar disso, o bom-senso recomenda-nos certa cautela para não cairmos em certos exageros e análises precipitadas, mesmo que autores como Clark (1973) afirmem que a infiltração “banto no território terá sido feita gradualmente, por pequenos grupos (...), que terão sido acolhidos pelas populações autóctones, e na maior parte vivendo o período mesolítico”. Este ponto de vista reforça a nossa hipótese de os Ovimbundu serem resultado de uma simbiose entre os autores das pinturas de Caninguiri e os Bantu que, posteriormente, os contactaram. É do mesmo autor a ideia segundo a qual “a ocupação de lugares desertos ou de fraca densidade populacional, a miscigenação, a adopção da cultura e até da língua dos povos autóctones terá dado lugar a uma bantoização progressiva das populações”.

Caninguiri: O berço dos Ovimbundu

Pese embora estes subsídios fica por responder a questão do significado da narrativa do subgrupo Hanya que, conforme nos diz Hauenstein (1967), também postula pela existência de Féti e Tchoya como o fazem os Ngalangi. A única diferença reside no facto de que, para os Hanya, os Ovimbundu teriam vindo de um local chamado Nali, instalando-se, posteriormente, em Cinendele já em território angolano. E não deixam de ser curiosos os palpites de Child de que Féti teria emigrado mais para Norte. Nesta linha de ideias os reis Ngola, de cujo nome deriva Angola, teriam descendido de Féti. Consequentemente, algumas etnias irmãs seriam, nesta linha de ideias, descendentes da etnia Ovimbundu, e não o contrário, como o afirmam certos estudiosos. Será?

Bibliografia:

Cambell, J. (1997). O poder do mito. S.Paulo: Ed.Palas Athena.

Chiapini, L. (2000). Género dos discursos na Escola. Brasil:Cortez Editora.

Childs, M. (1949). Umbundu Kinship and Character. Londres:Ed. International Africain Institute

Clark, D. (1963). A pré-história de África. Lisboa: Edições Verbo.

Ervedosa, C.(1980). Arqueologia Angolana. Angola: Ministério da Educação

Keiling, L. (1934). Quarenta anos de África. Braga. Ed. Missões de Angola e do Congo

Hauenstein, A . (1967). Lês Hanya (Description d´un groupe ethnique bantou de l´Angola. Wiesbaden : Franz Steiner Verlag GMBH.

Lévi-Strauss, Cl. (1967). A estrutura dos mitos. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro

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