Accountability: um termo necessário ao dicionário mental dos angolanos

accountability

Ultimamente temos sido surpreendidos com notícias das mais espampanantes que só passam despercebidas àqueles que olham sem ver e ouvem sem escutar. A primeira das notícias vem do mundo do espectáculo, tendo como figura central uma personalidade mais conhecida por Riquinho, que veio a terreiro dizer algo tão grave quanto bombástico: o presidente da República, JES, teria apreciado sobremaneira o espectáculo de Roberto Carlos por si patrocinado, que, diante do torcer do nariz do então Ministro da Cultura, lhe teria dado um milhão de dólares, mas que apenas lhe teriam chegado às mãos quinhentos mil dólares. Esta notícia remete-nos a outras, como o lançamento do  AngoSat (um satélite)  com o concurso da Rússia; a queixa crime apresentada por Angola contra um banco português pelo desaparecimento de cerca de trezentos e oitenta milhões de dólares, isso para não falar duma outra notícia anterior sobre a reabilitação, em Benguela, do Jardim República com um orçamento de  um milhão e setecentos mil dólares. Realmente, os governantes do país são verdadeiros avestruzes que comem tudo, inclusivamente pedras, pregos e areia não se importando com o lado indigesto do que tragam. 

O que se pretende com este artigo não é abordar a intoxicação alimentar a que os nossos governantes estão e têm sido sujeitos, mas a demonstração como  o accountability  nos pode, até certo ponto, livrar de tais situações.

A noção de accountability, apesar de não haver um consenso, pode ser traduzida por  dever de prestar contas, transparência ou responsabilidade na gestão pública, mas a sua essência remete-nos à obrigação de qualquer personalidade, órgão, independentemente da estrutura, ter a obrigação de prestar contas, quer às instâncias que o controlam, quer às que representam. Eis a razão que leva a que o accountability toque em todos os níveis da vida social, de modo a podermos falar do accountability na vida política onde, por exemplo, através da interpelação, o parlamento controla e fiscaliza o próprio governo; do accountability administrativo, que consiste na fiscalização, de preferência por comissões independentes, da forma como as regras internas e as normas de uma instituição têm sido cumpridas; do accountability de mercado onde se pretende fiscalizar e controlar a forma como os serviços públicos e privados prestam um serviço de qualidade aos seus cidadãos.

O  accountability é, sob este ponto de vista, um instrumento institucionalizado que exige  a quem desempenha determinadas funções de importância capital para a sociedade, explicações sobre o que anda a fazer, quanto gasta, como é que, na qualidade de  gestor público ou político, exibe sinais exteriores de riqueza muito para além dos seus rendimentos. Mas o accountability,  longe de se resumir apenas ao controlo e a punição, tem também, este é a sua vitalidade, um lado pedagógico, uma vez que a sua aplicação permite aos gestores ou governantes, a auto-avaliarem-se num contínuo processo de aprendizagem que se exige, sobretudo, em cargos pagos pelo dinheiro dos contribuintes ou derivado de bens, como o petróleo ou os diamantes, que são pertença de toda a comunidade.

A pertinente, e sempre actual, obra de Clark Leith, “Why Botswana Prospered”, mostra-nos que a adopção e a inclusão do accountability  na cultura de uma determinada sociedade, é uma das condições sine qua non  para a  consolidação da democracia e de um Estado de direito e de jure. No entanto, na senda do pensamento de Leith, para que isso aconteça é necessário, em primeiro lugar, que a elite do país saiba gerir, de forma prudente, as suas riquezas minerais e saiba investir, com coragem, não só nas infra-estruturas, mas também e, fundamentalmente, no capital humano. Em segundo lugar, os governantes devem primar por uma perícia técnica na gestão macroeconómica o que também, como se pode entender, apenas é possível com uma estabilidade político e institucional a ser garantida pelo sistema político. Em terceiro e último lugar, a democracia não pode pisar ou passar por cima, devido a fantasmas infundados e infundidos sub-repticiamente no tribalismo, na cultura de um povo. Diz-nos Leith que a democracia triunfou em Botswana porque a mesma respeita a tradição do povo Tswana. É neste sentido que foi reabilitado o Kogtha, que é um fórum tradicional de consulta tribal e que faz parte do próprio sistema político. Em Botswana existe, assim, uma correcta coabitação da modernidade com a tradição, assente na cultura desse povo. E  o mais surpreendente é o facto de as culturas africanas serem  de motus proprio  um accountability.

Se o accountability fizesse parte mentalidade dos angolanos, JES teria de explicar a quem de direito e, sobretudo, aos contribuintes e ao povo em geral, onde  tirou o milhão de dólares, num país em que há pessoas que ainda morrem à entrada dos hospitais por falta de assistência médica, e deu ao homem da Casa Real. Também deveria responder, ao seu próprio partido, MPLA, ao parlamento e ao povo em geral,  se, no momento actual, é mais prioritário o satélite ou dar de comer e vestir a milhões de angolanos excluídos. Outras questões de somenos importância seriam, por exemplo, saber a fonte onde a  sua filha,  Isabel dos Santos, têm acarretado verbas inimagináveis e investido a torto e direito assim como as contrapartidas que, em termos de impostos, o país tem arrecadado com esses investimentos. Mais importante ainda é que o accountability permitir-nos-ia saber como os bancos estrangeiros (de quase todo o mundo) estão a financiar a reconstrução nacional do país com empréstimos garantidos pelo petróleo da Sonangol. É que, o governo angolano, ao disponibilizar empréstimos com garantia petrolífera à Sonangol, faz com que o nosso país fique hipotecado, não se sabe por quanto tempo, condenando assim as futuras gerações a uma vida de incerteza e de pobreza. Em suma, o accountability permitir-nos-ia conhecer a forma como o dinheiro emprestado por tais bancos é usado, e explicar porque parte do orçamento oficial, é gerido pelo Tesouro e outra, a mais volumosa, por um sistema governo sombra (via Sonangol, Casa Militar, etc.) não sujeito ao escrutínio público.

 É chegado o momento de pensarmos, agirmos com accountability, sob o risco de um dia acordarmos num país em que apenas a bandeira e o hino serão nossos.

 

Referências:

LEITH, J. C. (2005). Why Botswana Prospered Montreal, McGill-Queen’s University Press.

Categoria

Também pode comentar desde o Facebook